O Drible

Estudos literários para vestibulares.

Desenganado pelos médicos, um cronista esportivo de oitenta anos, testemunha dos anos dourados do futebol brasileiro, tenta se reaproximar do filho com quem brigou há um quarto de século. Toda semana, em pescarias dominicais, Murilo Filho preenche com saborosas histórias dos craques do passado o abismo que o separa de Neto.

Revisor de livros de autoajuda, Neto leva uma vida medíocre colecionando quinquilharias dos anos 1970 e conquistando moças que trabalham no comércio perto de sua casa, no bairro carioca da Gávea. Desde os cinco anos, quando a mãe se suicidou, sente-se desprezado pelo pai famoso.

Como nos romances anteriores de Sérgio Rodrigues, há um contraponto de vozes narrativas. Entremeado com o relato principal, transcorre o livro que Murilo escreve sobre um extraordinário jogador dos anos 1960 chamado Peralvo, dotado de poderes sobrenaturais e que teria sido “maior que Pelé” se não tivesse encontrado um fim trágico.

A alternância entre o realismo da história de Neto, seco e desencantado, e o realismo mágico da história de Peralvo sinaliza a perícia de Sérgio Rodrigues, um dos narradores mais habilidosos de sua geração.

O personagem do velho cronista é o veículo de uma celebração da história do futebol raras vezes empreendida pela literatura brasileira. Murilo Filho, porém, é mais do que isso. Com atraso, como se tomasse um drible, Neto entrevê nas frestas da narrativa do pai – e o leitor, um pouco antes dele – um sombrio segredo de família e um episódio tenebroso dos porões da ditadura militar.

 

“O Drible” (Companhia das Letras, 2013), terceiro romance do escritor fluminense Sérgio Rodrigues. Neto, o protagonista, ancestral do craque de bola Peralvo, o pai insuspeito. Até os 50 anos de idade Neto alimentava pensamentos sombrios de matar Murilo Filho, que acreditava ser seu pai biológico. O motivo de tanto ódio é que Neto atribuía o suicídio da mãe a Murilo, um inveterado rabo de saia que, por tabela, destruiu o casamento do filho tornando-se amante da própria nora, Ludmila Godoy.

Além de canalha, Murilo é cronista esportivo carioca famoso entre os anos 60 e 80, casado com Elvira Lobo. Sua grande obsessão é o futebol, força realmente cósmica a partir do qual pretende explicar o Brasil e suas contradições. À beira da morte, Murilo entrega ao filho um livro datilografado sobre o craque negro Peralvo, que era para ter sido ainda maior do que Pelé. Foi ele, e não o rei de Três Corações, quem estabeleceu um pacto entre o mundo da bola e “o da magia propriamente dita”. Sua história é contada pelo cronista dentro de “O Drible”, sendo Peralvo uma metáfora do Brasil da década de 1960, quiçá de todas as eras do país, gigante cuja promessa não se cumpre. Conterrâneos nascidos na fictícia Merequendu, Murilo e Peralvo são amigos, porém há traições mútuas: o primeiro por revelar ao mundo do esporte os poderes paranormais do jogador; o jogador por tornar-se amante de Elvira, esposa de Murilo. É tarde quando Neto — cujo apelido é Tiziu — descobre a verdade, num romance sobre traição, egoísmo, mágoa e perdão. Sérgio Rodrigues se sobressai como escritor de talento em um livro bem fluminense — a umbanda, as entidades, o Pai da Luz — e saborosamente brasileiro ao mesmo tempo, porque seu pano de fundo é o esporte nacional.

Chamado de Dickens de Campos Sales por Nelson Rodrigues na redação do “Jornal dos Sports”, Murilo queria que Neto fosse jogador de futebol e torcesse para o América. Nem uma coisa nem outra acontecem: o bastardo torna-se revisor de textos, músico e flamenguista: “O resultado previsível foi Neto virar um americano gelatinoso que só esperava, para derreter, a aproximação de uma fonte de calor. Esta veio poucos anos depois na forma de um vulcão chamado Zico. Virou rubro-negro”. Ele e o suposto pai, na verdade, nunca se entenderam. Os sucessivos encontros que passam a ter a partir do primeiro capítulo constituem tentativas de reconciliação, com Neto na meia idade e Murilo beirando os oitenta, carregando seu próprio fantasma. O ano é 2010. A narrativa desdobra-se entre o tempo presente e flashbacks que, página após página, revelam os principais motivos do desentendimento entre pai e filho. Este, ainda por cima, vítima de surras, esculhambação e bullying, desde a infância. Revoltado, Neto se isola por vinte e seis anos e pensa de forma recorrente em matar Murilo, mesmo depois de restabelecerem contato. Matará? Não matará?